UA-123089393-2 “Não pedi para nascer!”: o abandono gera o dever de indenizar?
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  • Juliana Marchiote

“Não pedi para nascer!”: o abandono gera o dever de indenizar?

“Minha mão pequena bate no vidro do carro;

No braço se destacam as queimaduras de cigarro, a chuva forte ensopa a camisa e o short; Qualquer dia a pneumonia me faz tossir até a morte

Uma moeda, um passe me livra do inferno, me faz chegar em casa e não apanhar de fio de ferro; O meu playground não tem balança, escorregador, só a mãe batia perguntando quanto você ganhou

Jogando na cara que tentou me abortar, que tomou umas 5 injeções pra me tirar; Quando eu era nenê tentou me vender uma pá de vez, quase fui criado por um casal inglês

Olho roxo, escoriação, po*%a, que foi que eu fiz? Em vez de tá brincando, tá colecionando cicatriz…

O seu papel devia ser cuidar de mim, cuidar de mim, cuidar de mim; Não espancar, torturar, machucar, me bater, eu não pedi pra nascer”.

Letra do FACÇÃO CENTRAL – Eu Não Pedi Para Nascer

Sob esse pensamento, “eu não pedir para nascer”, o indiano Raphael Samuel ficou famoso essa semana, após afirmar que processará os pais. Samuel apoia um grupo de “anti-natalidade” que acredita que as crianças não devem nascer para sofrer na vida. Ele também incentiva as pessoas a questionarem a seus pais por qual motivo eles decidiram ter um filho.


Em outra linha, o descaso paternal foi tema do belíssimo filme sírio-libanês Cafarnaum (imagem que figura no presente artigo), o filme conta a história de Zain al Rafeea, um menino de doze anos que vive precariamente com os pais e os irmãos em um cortiço. Quando os pais decidem “vender”sua irmã para um comerciante, Zain foge de casa e começa uma triste jornada por Beirute.


Após passar por mazelas que arranca a dignidade de qualquer ser humano, o garoto decide processar seus pais, acusando-os do “crime” de lhe dar a vida. Ao ser questionado sobre os motivos do processo, ele responde que a culpa deles é a de o terem colocado no mundo.

Infelizmente existem milhões de “Zains” espalhados pelo mundo, crianças abandonadas à própria sorte. Segundo a UNICEF seis em cada 10 crianças e adolescentes brasileiros vivem em situação de pobreza no Brasil.Em seu estudo a Unicef incluiu seis direitos básicos: 1) educação, 2) informação, 3) água, 4) saneamento básico, 5) moradia e 6) proteção contra o trabalho infantil. A maior privação é de saneamento básico:

Isso significa que cerca de 32,7 milhões de pessoas com menos de 17 anos vivem em situação de extrema vulnerabilidade.

Em 1996 foi sancionada a lei 9263 que regulamenta o chamado planejamento familiar. A Lei estabelece que os órgãos responsáveis, em todos os seus níveis, garanta assistência à concepção e contracepção como parte das demais ações que compõem a assistência integral à saúde. Auxiliando as pessoas na escolha de número, tempo e espaço em querer ter um filho.


Não obstante, apesar de ser quase poético, trata-se de uma realidade bem distante da maioria das pessoas, o planejamento familiar deveria atingir a quem mais precisa, aos carentes sociais, aos que não possuem consciência da própria condição.


Em outro turno, o ordenamento jurídico trata à exaustão o cuidado pelo qual devemos ter com a criança, senão vejamos:

Constituição Federal: Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.


ECA: Art. 5º – Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.


Código Penal: Art. 133 – Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:Pena – detenção, de seis meses a três anos.


Código Civil: Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha. Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:II – deixar o filho em abandono;Entre outros.


A 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal manteve a decisão que condenou um pai a pagar R$ 50 mil de danos morais ao filho, sob a alegação de abandono afetivo. De acordo com a decisão, a simples falta de afeto não são puníveis pelo ordenamento jurídico “Na realidade, para que se fale em danos morais, é necessário perquirir sobre a existência de responsabilidade, no caso, subjetiva, que gere o dever de indenizar”.Ainda que seja impossível punir alguém pela falta de afeto, a negligência pode ser passível de indenização. A sentença concluiu que as provas comprovam que houve o dano sofrido pelo autor, inclusive resultando em problemas de saúde e comportamentais.

Em 2003 o Tribunal do Rio Grande do Sul condenou um pai foi a pagar ao filho uma indenização fixada em 200 salários mínimos da época.


Um dos caso mais famosos foi julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) que condenou um pai a pagar à filha indenização de R$ 200 mil por abandono afetivo.”Amor não pode ser cobrado, mas afeto compreende também os deveres dos pais com os filhos. […] A proteção integral à criança exige afeto, mesmo que pragmático, e impõe o dever de cuidar”, entendeu o ministro Marco Buzzi.


Em 2015, um juiz de Ribeirão Preto (SP) condenou um pai a indenizar o filho por danos morais. O menino relatou/provou que a ausência da figura paterna lhe causou grandes sofrimento. O pai foi obrigado a pagar R$ 100 mil de indenização.


Impostante salientar que o magistrado leva em consideração alguns critérios ao estipular o valor da indenização, sendo um deles a capacidade econômica do genitor.

Nessa seara, a Ministra Nancy Andrighi entende que: “nas ações de indenização por abandono afetivo não se fala ou se discute o amor e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos”.


Contrário a esse entendimento, a 1ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) negou o pedido de danos morais feito por um jovem de 25 anos que alegou abandono afetivo por parte de seu pai. Em sua decisão a turma enfatizou que: “Inexistência de afeto só é passível de gerar indenização se resultou constrangimento público ao filho indesejado.


O dano moral é subjetivo e relativo,as pessoas são individuais, o que causa grande abalo em um ser humano, a um outro pode não causar. Em todo caso, configura-se o dano quando atentarem contra a imagem, a personalidade, ao nome, etc.. causando assim, constrangimento, frustração, humilhação.


No caso do abandono afetivo, o dano moral não se configura simplesmente pelo abandono em si. É preciso que se prove as sequelas causadas pela ilicitude do abandono, sofrimento, humilhação e constrangimento diante da falta daqueles que são responsáveis legais pela criança.


Em 2015 os ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça recomendaram muita prudência aos magistrados de todo o país quando forem julgar casos de abandono afetivo. O alerta foi dado ao analisarem o recurso especial com o qual uma filha tentou, junto ao tribunal, receber indenização do pai, sob alegação de abandono afetivo. Ela buscava a compensação econômica alegando ter sofrido danos morais com a situação.

Ao negarem o recurso, os ministros alertaram para a complexidade das relações familiares sendo preciso prudência do julgador na análise dos requisitos necessários à responsabilidade civil.


Também em 2015 foi aprovado o projeto do então senador Crivella (PLS 700/2007), que caracteriza o abandono moral dos filhos pelos pais como ato ilícito. O projeto se aprovado alterará o Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA) para estabelecer que é dever dos pais prestarem assistência moral aos filhos, visando punição àqueles que não cumprirem sem justa causa. A última movimentação do projeto ocorreu na Câmara em 2017 sob o nº: PL-3212/2015com parecer favorável pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) .


Apesar de não ter lei específica sobre o tema, nosso ordenamento jurídico entende ser cabível em situações bem específicas a indenização por abandono afetivo, provando realmente que o abandono causou danos.


Lembrando que,a reparação por danos morais e materiais decorrentes do abandono afetivo possui caráter econômico, motivo pelo qual não pode ser admitida como imprescritível.Sendo assim, não pode ser ajuizada pelo filho a qualquer tempo, mas sim até o prazo de 3 (três) anos após atingir sua maioridade.


Há ainda os casos de reconhecimento de paternidade após a maioridade, onde a prescrição começa após o reconhecimento da paternidade. Nesse caso, no que diz respeito em ser ou não cabível a indenização por abandono, o entendimento não é unânime.


Uma mulher teve rejeitado o pedido de indenização por danos morais por abandono afetivo paterno,ainda que tenha ocorrido o reconhecimento da paternidade. Segundo o desembargador Brüning,”houve omissão, nexo casual e dano mas, sem a culpa, não há como punir o homem. Além disso, como não existia qualquer vínculo afetivo, não ocorreu o rompimento do mesmo.”


Já o juiz da Terceira Vara de Família e Sucessões de Cuiabá, condenou um pai a pagar a indenização no valor de R$ 151.296 à filha que só foi reconhecida por ele aos 35 anos de idade. Ela ajuizou uma ação de investigação de paternidade cumulada com pensão alimentícia e indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo. Foi julgado improcedente o pedido de pensão alimentícia, pois a autora é maior de idade,já o direito da autora de ser indenizada pelos abandono foi reconhecido pela sentença, na sua decisão, o magistrado afirmou que “se reconhece que não se está punindo a falta de afeto do pai para com o filho, mas a quebra do dever jurídico de convivência familiar.


Por fim, a ação é personalíssima, ou seja, somente quem sofreu o abandono pode propor a ação. Há ainda o chamado abandono afetivo inverso, onde pais idosos são abandonados à sua própria sorte pelos seus filhos adultos. Mas, será tema para outro artigo.


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