Você sabia que é possível celebrar convenção processual no pacto antenupcial e de convivência?
- Juliana Marchiote
- há 14 minutos
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A figura dos negócios jurídicos processuais, especialmente a partir do artigo 190 do CPC, ampliou significativamente o espaço da autonomia da vontade das partes. Com isso, os sujeitos do processo podem, de forma antecipada e vinculante, ajustar aspectos procedimentais conforme as peculiaridades de cada relação jurídica, desde que respeitadas as disposições legais.
Didier Jr. (2015, p. 24) conceitua o negócio jurídico processual como “o fato jurídico voluntário, em cujo suporte fático se confere ao sujeito o poder de regular, nos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais ou alterar o procedimento”.
O artigo 190 do CPC dispõe:
“Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.”
A doutrina majoritária reconhece não apenas a admissibilidade, mas a importância dos negócios jurídicos processuais, com fundamento no princípio da cooperação processual.
O artigo 200 do CPC, por sua vez, estabelece que os atos das partes produzem efeitos imediatos. Nesse sentido, Alvim et al. (2015, p. 546-547) afirmam que as convenções processuais atípicas não dependem de homologação judicial, salvo exigência legal expressa (como no art. 357, § 2º) ou convenção das próprias partes.
Essa compreensão é reforçada pelo Enunciado 133 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): “Salvo nos casos expressamente previstos em lei, os negócios processuais do art. 190 não dependem de homologação judicial”.
No campo do Direito de Família, os negócios jurídicos processuais têm encontrado terreno fértil para aplicação, inclusive assim preceitua o Enunciado 492 do FPPC:
O pacto antenupcial e o contrato de convivência podem conter negócios processuais.
E o Enunciado 18 da I Jornada de Direito Processual Civil do CJF:
A convenção processual pode ser celebrada em pacto antenupcial ou em contrato de convivência, nos termos do art. 190 do CPC.
As ações de família seguem um rito especial (arts. 693 a 699 do CPC), que busca estimular a solução consensual das demandas familiares. Nesse contexto, os negócios jurídicos processuais são amplamente utilizados, especialmente em pactos de convivência, antenupciais e no plano de parentalidade.
Nesses instrumentos, é comum as partes convencionarem, por exemplo, que antes de qualquer requerimento judicial, submeterão a controvérsia à mediação, como a etapa inicial do procedimento. buscando evitar o litígio.
Farias e Rosenvald (2020, p. 175) destacam que o Direito de Família é um dos campos mais apropriados para a utilização de negócios processuais atípicos, tanto pré quanto intra-processualmente:
“Trata-se de evidente manifestação de democratização do processo, permitindo às partes [...] adaptar o procedimento aos seus anseios e interesses — o que garante maior comparticipação.”
Exemplos no Direito de Família
Divórcio: São válidos acordos sobre mediação prévia obrigatória, divisão de despesas e ônus, pactos de irrecorribilidade, formas de comunicação entre as partes e produção antecipada de provas, conforme o Enunciado 19 do FPPC.
Guarda de filhos: Por envolver direito indisponível, as cláusulas sobre guarda têm caráter meramente indicativo, cabendo ao juiz zelar pelo melhor interesse da criança ( CF, art. 227). Contudo, é possível estipular, no pacto, ou plano de parentalidade, em caso de divergência quanto à guarda ou ao regime de convivência dos filhos, as partes comprometem-se a submeter a controvérsia ao procedimento de mediação, antes de qualquer demanda judicial.
Pensão alimentícia: Não é possível renúncia genérica e injustificada, vedada pelo art. 1.707 do Código Civil, mas igualmente de guarda é possível As partes estipulam que o valor/revisão da pensão alimentícia será precedida de tentativa mediação. Caso não haja acordo, as partes concordam com a dispensa da audiência de conciliação.
Partilha de bens: São válidas cláusulas que estabeleçam critérios de negociação sobre ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, inclusive métodos extrajudiciais de resolução de conflitos patrimoniais, como por exemplo: acordar sobre a produção antecipada de provas documentais relativas aos bens comuns, rendimentos e despesas, com o objetivo de facilitar a resolução consensual das questões patrimoniais.
A autonomia conferida às partes pelo artigo 190 do Código de Processo Civil é um importante instrumento de flexibilização procedimental. Contudo, tal autonomia encontra limites intransponíveis nas garantias processuais e na ordem pública.
Isso significa que ninguém pode renunciar ao exercício do próprio direito de ação ou à ampla defesa diante de eventual lesão. Assim, a doutrina majoritária entende que é nulo e ineficaz o denominado pactum de non petendo, cláusula pela qual uma das partes se compromete a não recorrer ao Poder Judiciário, ou ainda, que autoriza, de antemão, a prática de atos de constrição judicial sem contraditório, e de defesa.
Imagine-se, por exemplo, a hipótese em que um cônjuge, no âmbito de uma convenção processual, comprometa-se a não requerer a quebra de sigilo bancário da outra parte, justamente a prova que poderia elucidar questões patrimoniais relevantes. Tal cláusula interferiria no poder de cautela do magistrado, comprometeria o princípio do contraditório e da ampla defesa, e, por consequência, violaria o devido processo legal.
São nulas, portanto, cláusulas que:
Implicam renúncia irrestrita ao direito de ação;
Autorizam medidas constritivas sem contraditório;
Impedem ou limitam indevidamente a produção de provas essenciais;
Comprometem a formação do convencimento do juiz;
Ofendem garantias constitucionais do devido processo legal.
A ampliação da autonomia da vontade reforça a concepção de um processo civil democrático e cooperativo. No Direito de Família, essa flexibilidade contribui para maior previsibilidade e efetividade na resolução de conflitos, desde que observados os limites legais, a boa-fé e a proteção dos direitos indisponíveis.
Os pactos antenupciais, os contratos de convivência, plano de parentalidade ganham nova função social, atuando como instrumentos eficazes de autorregulação. Entretanto, é essencial a atuação técnica dos operadores do Direito para assegurar que tais convenções respeitem os valores constitucionais, evitando abusos e promovendo justiça e equidade no processo.
Referências (ABNT)
ALVIM, Eduardo Arruda; GRANADO, Daniel Willian; FERREIRA, Eduardo Aranha. Direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: volume único. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: teoria geral dos negócios jurídicos processuais. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 24. ed. Salvador: Juspodivm, 2022.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. v. 1.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: família. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
GOMES, Orlando. Contratos. 37. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. 3. ed. São Paulo: RT, 2019.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 17. ed. São Paulo: RT, 2023.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 65. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.