Como as condições econômicas moldam as relações familiares?
- Juliana Marchiote
- há 12 minutos
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O Direito de Família não é alicerçado exclusivamente pelos afetos. A condições materiais também influenciam diretamente as relações familiares. No Brasil, onde mais de um terço da população economicamente ativa sobrevive com até um salário mínimo mensal, as decisões tomadas pelas famílias — ou a abstenção de decisões importantes — muitas vezes decorrem unicamente da sua configuração econômica.
Sendo a sociedade composta por um conjunto de famílias, sua reestruturação interna motivada por transformações econômicas, não altera apenas a dinâmica do lar, mas reverbera na organização social como um todo, até mesmo nas estruturas institucionais.
Um exemplo é o crescimento do número de famílias monoparentais chefiadas por mulheres no Brasil. Segundo o IBGE, em 2022, cerca de 11,5 milhões de lares brasileiros eram chefiados por mulheres sem a presença do cônjuge.
Esse novo arranjo familiar não apenas exige uma reinterpretação das normas jurídicas tradicionais sobre guarda, alimentos e convivência familiar, como também pressiona o sistema de políticas públicas como a saúde, educação, como creche, assistência social, a se reorganizar para atender essa configuração, muitas vezes marcada por acúmulo de responsabilidades e maior vulnerabilidade econômica.
Gary Becker, em sua obra A Teoria Econômica do Casamento (1973), foi um dos primeiros a aplicar os instrumentos analíticos da economia ao comportamento familiar. Para o autor, a união conjugal pode ser interpretada como um contrato racional entre indivíduos que buscam maximizar sua utilidade pessoal, considerando aspectos como divisão de tarefas, especialização e cooperação econômica. O casamento, o divórcio e a procriação são, portanto, decisões econômicas.
O divórcio é outro exemplo claro, pois a sua concretização muitas vezes esbarra na inviabilidade prática de manter dois lares, a queda do padrão de vida, a dependência econômica de um dos cônjuges. Tais fatores funcionam como barreiras à autonomia conjugal e individual, tornando o divórcio, em muitos casos, um projeto postergado por falta de condições materiais.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no Censo Demográfico de 2022, quase 70% da população economicamente ativa brasileira recebe até dois salários mínimos mensais. Essas severas restrições orçamentárias da população, impõe a responsabilidade e maturidade de se abrir à complexidade social, evitando abstrações jurídicas descoladas da realidade concreta.
Mesmo com o surgimento de múltiplas configurações familiares, a interdependência econômica entre seus membros permanece uma constante, sobretudo em contextos de vulnerabilidade.
A fixação de alimentos é um dos institutos que mais evidenciam a necessidade de articulação entre Direito e análise socioeconômica. O Código Civil, em seu artigo 1.694, orienta que os alimentos sejam fixados com base no binômio necessidade x possibilidade. Contudo, o que se verifica na prática é uma aplicação muitas vezes formal desse critério, ignorando a inserção econômica real do alimentante.
No cenário brasileiro é imprescindível que a fixação dos alimentos leve em conta, além do binômio, considere a capacidade concreta de pagamento e até mesmo a localização geográfica do alimentado e alimentante.
Já o divórcio é, por definição, um marco de redefinição patrimonial e de autonomia individual. No entanto, dificilmente seus impactos econômicos são simétricos entre os ex-cônjuges. Pesquisas indicam que as mulheres, especialmente quando mães e chefes de família, são as mais afetadas economicamente após a dissolução da união. Isso se deve à persistente divisão desigual das tarefas de cuidado, e à dependência financeira construída durante o relacionamento.
O antropólogo Paul Bohannan, ao analisar o divórcio como processo multifacetado, propõe a existência de seis estágios: emocional, legal, econômico, parental, social e psicológico. O "divórcio econômico" revela, segundo ele, o desequilíbrio financeiro gerado pela separação, com alteração no padrão de vida e restrição ao uso de bens comuns, especialmente por parte do cônjuge mais vulnerável economicamente.
Nesse contexto, observa-se o crescimento de pedidos por medidas compensatórias no âmbito do divórcio, tais como os alimentos compensatórios, especialmente quando um dos cônjuges renuncia à própria carreira profissional em prol do lar e/ou dos filhos. Tais pleitos buscam restaurar, ao menos parcialmente, o desequilíbrio econômico gerado pela dissolução do vínculo conjugal.
Contudo, essas medidas, embora juridicamente cabíveis, frequentemente se deparam com o mesmo obstáculo enfrentado na fixação dos alimentos convencionais: o não pagamento pelo ex-cônjuge devedor(a).
Por isso, mais uma vez se impõe a necessidade de uma análise econômica concreta no processo. Avaliar a real capacidade de adimplemento, os custos de vida, a inserção (ou exclusão) no mercado de trabalho e principalmente a dinâmica do casal, é essencial para que a decisão judicial seja exequível e eficaz.
Esses pleitos não visam restaurar uma equidade que, uma vez rompida pelo divórcio, torna-se de fato irrecuperável, mas sim buscar uma compensação proporcional pelos papéis econômicos assumidos consensualmente durante a vida em comum.
A dimensão patrimonial das relações familiares é também afetada pela proposta de atualização do Código Civil prevista no Projeto de Lei n.º 4, de 2025. O referido projeto altera a redação do artigo 1.845 do Código Civil, retirando o cônjuge ou companheiro da condição de herdeiro necessário, que passaria a ser restrita aos descendentes e ascendentes.
A proposta tem dividido opiniões. Parte entende que tal mudança estimularia o planejamento sucessório e o diálogo familiar sobre a disposição de bens. No entanto, outros alertam para os riscos da medida, especialmente diante da realidade brasileira: a maioria da população não possui renda ou patrimônio relevante que demande planejamento sucessório formal.
Nesse cenário, cônjuges e companheiros idosos, que dedicaram décadas à constituição da vida comum, podem ser deixados em situação de desamparo patrimonial, sobretudo se não houver testamento. E o que seria um incentivo à autonomia privada pode converter-se em um cenário de grande litígio.
A permanência em relações familiares insatisfatórias — especialmente por motivos financeiros — tem sido associada a quadros de ansiedade, depressão, transtornos psicossomáticos e doenças cardiovasculares, essa insatisfação familiar também pode se agravar em contextos de pobreza, gerando conflitos.
Estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) indica que a dependência financeira da mulher em relação ao marido pode influenciar a ocorrência de violência conjugal, sendo que quanto maior a dependência, menores as chances de que a violência seja reportada.
Sob esse argumento, atualmente tramita o Projeto de Lei 1037/23 que permite saques do FGTS por mulheres vítimas de violência doméstica ou que sejam responsáveis pelo sustento da família. A proposta também autoriza o acesso ao benefício para a gestante ou parturiente que necessitar de recursos financeiros para promover o desenvolvimento da gravidez e da criança.
A autora da proposta, deputada Rogéria Santos (Republicanos-BA), afirma que, "quanto maior a dependência financeira dos agressores, menores são as chances de que a violência seja reportada". Assim, argumenta a parlamentar, permitir o saque do FGTS é "essencial para a vida e proteção dessas mulheres e seus filhos durante essa fase peculiar". O projeto também possibilita o saque quando a trabalhadora for a responsável por família monoparental ou tiver dependente com deficiência ou doença grave.
No Brasil, onde predomina uma população de baixa renda, marcada por desigualdades regionais, de gênero e de raça, permeada sempre por muito litígio, o Direito de Família deve incorporar variáveis econômicas reais, sob pena de se tornar instrumento de reprodução de desigualdades. Integrar estatísticas, condições socioeconômicas e estruturas familiares é fundamental para uma abordagem mais eficaz, realista e humanizada do Direito, capaz de proteger verdadeiramente aqueles que mais dependem da sua atuação.
Referências
BECKER, Gary. A Treatise on the Family. Harvard University Press, 1991.
BOHANNAN, Paul. Divorce and After: An Analysis of the Emotional and Social Aspects of Divorce. New York: Doubleday, 1970.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n.º 4, de 2025. Dispõe sobre a atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e da legislação correlata. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/166998. Acesso em: 19 maio 2025.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo Demográfico 2022: Resultados do universo por rendimento de todas as fontes. Disponível em: https://www.ibge.gov.br. Acesso em: 19 maio 2025.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias Contemporâneas e o Novo Direito. São Paulo: Saraiva, 2022.
SOARES, Laís de Sousa Abreu; TEIXEIRA, Evandro Camargos. Dependência econômica e violência doméstica conjugal no Brasil. Planejamento e Políticas Públicas (PPP), n. 61, p. 263–283, jan./mar. 2022. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/11440. Acesso em: 19 maio 2025.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS. Os 50 anos da teoria econômica da família e as contribuições de Gary Becker. Disponível em: https://www.ufrgs.br/fce/os-50-anos-da-teoria-economica-da-economia-da-familia-e-as-contribuicoes-de-gary-becker/. Acesso em: 19 maio 2025.