O Tribunal de Justiça de São Paulo, recentemente, concedeu a uma mãe o acesso aos dados do celular da filha falecida. A sentença de primeiro grau julgou o pedido improcedente, sob o argumento de que, ao inexistir autorização deixada em vida pela pessoa que faleceu, a concessão de acesso seria uma violação de privacidade.
A mãe interpôs apelação, alegando ser a única herdeira da filha, fazendo jus, portanto, aos bens deixados por ela, o que abrangeria o acervo digital de dados. Alegou, ainda, que os arquivos digitais consistem em bens móveis contemplados pelo Código Civil, que alude às “energias que tenham valor econômico”. E, como bens, deveriam ser transmitidos à herdeira.
O TJSP deu provimento ao recurso por entender que não havia, no caso concreto, justificativa para “obstar o acesso da única herdeira às memórias da filha falecida” e que não havia, nos autos, “qualquer indício de que isso violaria direitos da personalidade”.
A decisão gerou muitas dúvidas, preocupações e questionamentos, especialmente o acesso de terceiros/ familiares a conversas privadas, imagens, violação de e-mails, vídeos e outros conteúdos privados que, se a pessoa estivesse viva, manteria na esfera privada.
O art. 5º, X, da CF 1988 considera “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
O art. 21 dispõe que “A vida privada da pessoa natural é inviolável e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
Cabendo aqui destacar o Enunciado 404 da V Jornada de Direito Civil :
A tutela da privacidade da pessoa humana compreende os controles espacial, contextual e temporal dos próprios dados, sendo necessário seu expresso consentimento para tratamento de informações que versem especialmente sobre o estado de saúde, a condição sexual, a origem racial ou étnica, as convicções religiosas, filosóficas e políticas.
Segundo Gonçalves “mesmo após a morte alguns desses direitos são resguardados, como respeito ao morto, à sua honra ou memória e ao seu direito moral de autor, por exemplo”.
Para Gagliano e Filho atinge todos os indivíduos de forma que cabe a coletividade o dever de respeito aos direitos da personalidade.
O direito à privacidade deve, além de impedir o acesso a informações sobre a vida de uma pessoa, a intromissão de alheios, deve também proibir a divulgação e exploração da vida privada, incluindo imagens, fotos, dados, conversas particulares, vida financeira, amorosa e sexual.
"É, portanto, a exclusão do conhecimento alheio em relação àquilo que só diz respeito à própria pessoa, especificamente, quanto ao seu modo de ser. É o direito de resguardar-se a pessoa da ingerência alheia na sua vida privada. É o direito que a pessoa possui de resguardar-se dos sentidos alheios, principalmente da vista e ouvidos dos outros. Em suma, é o direito de estar só."²
Carlos Roberto Gonçalves discorre sobre o direito à intimidade:
A proteção à vida privada visa resguardar o direito das pessoas de intromissões indevidas em seu lar, em sua família, em sua correspondência, em sua economia etc. O direito de estar só, de se isolar, de exercer as suas idiossincrasias se vê hoje, muitas vezes, ameaçado pelo avanço tecnológico, pelas fotografias obtidas com teleobjetivas de longo alcance, pelas minicâmeras, pelos grampeamentos telefônicos, pelos abusos cometidos na Internet e por outros expedientes que se prestem a esse fim.
O direito alemão desenvolveu a teoria das esferas, basicamente divide a noção de privacidade em três esferas: a privada, a íntima e a secreta. Na esfera privada, encontram-se aspectos da vida da pessoa excluídos do conhecimento de terceiros. Na esfera íntima, o acesso é restrito a determinados indivíduos com os quais a pessoa se relaciona. A última esfera, a do segredo, refere-se ao sigilo de fatos específicos que não convém ser divulgados.
Tornou-se cada vez mais comum entre artistas norte-americanos documentar, por testamento, a proibição da reprodução de sua imagem em holograma digital após a morte. No Brasil, embora o número de testamentos tenha crescido após a pandemia, o planejamento sucessório ainda não é uma prática disseminada entre os brasileiros.
O Código Civil brasileiro, em seu art. 1.857, dispõe: "Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte." (...) § 2º : "São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado."
Diante disso, é possível fazer um testamento para proteger o seu direito de privacidade. Importante mencionar, são disposições testamentárias relacionadas à vontade do testador sobre sua privacidade e imagem, que são consideradas de caráter pessoal. Esses termos não se referem diretamente a direitos digitais com valor econômico, que é algo distinto.
Lacerda sobre bens digitais :
Se estiver diante de um bem de natureza patrimonial, deve-se permitir a transferência, seja por ato inter vivos ou mortis causa, pois se trata de objetos de valor econômico que integram esta nova noção de patrimônio, rascunhada neste estudo. Entretanto, se o bem em questão tiver caráter existencial, a sucessão, em princípio, deve ser inviabilizada, como forma de proteger a privacidade, a intimidade, a reputação, a esfera privada do morto ou do incapaz. Apenas excepcionalmente se deverá, mediante justificativa, autorizar o acesso aos bens dessa natureza.
Dessa forma, é possível redigir um testamento que proíba expressamente qualquer acesso ao telefone celular ou a qualquer outro dispositivo eletrônico do testador após seu falecimento. Todos os dados armazenados nesses dispositivos, incluindo, mas não se limitando a mensagens, fotos, vídeos e arquivos pessoais, devem ser considerados confidenciais e tratados com o devido respeito à privacidade.
Além disso, exigir dos herdeiros e demais interessados o respeito ao direito de personalidade do testador, abstendo-se de divulgar qualquer informação de caráter privado obtida por meio de dispositivos eletrônicos ou de qualquer outra fonte que possam vir a ter acesso.
Em caso de violação dessas disposições, pode-se nomear uma pessoa, nesse caso o cônjuge sobrevivente ou parentes em linha reta ou colaterais até quarto grau, para tomar as medidas legais cabíveis a fim de proteger a reputação, memória e os direitos de personalidade do falecido.
A proposta de revisão do Código Civil, já entregue ao ao Senado, dispõem que em caso de morte do titular dos bens digitais, esse patrimônio pode ser transferido aos herdeiros, assim como pode ser descrito em testamento.
Os herdeiros poderão pedir a exclusão da conta ou a sua conversão em memorial, diante da ausência de declaração de vontade do titular.
Outro ponto interessante é que, a não ser que o testamento diga o contrário, os herdeiros não podem acessar as mensagens privadas que constem no patrimônio digital. A exceção é se houver autorização judicial e comprovada necessidade, o que permite o acesso exclusivamente para os fins autorizados pela sentença e resguardado o direito à intimidade e privacidade de terceiros e será necessário autorização para criação de imagens de pessoas falecidas por meio de IA.
Em suma, não há, ainda, regulamentação no que diz respeito à herança digital no nosso ordenamento jurídico, sendo assim o testamento( manifestação de última vontade) pode servir de instrumento para que sejam resguardados os direitos de personalidade do falecido nos casos de transmissão das redes sociais e seu acervo digital não patrimonial.
1.Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, t. VII, p. 5 e ss.; DE CUPIS, Adriano. I diritti della personalità; DE-MATTIA, Fabio Maria. Direito da personalidade. Enciclopédia Saraiva do direito, v. 28, p. 155 e ss; e AMARAL, Francisco. Direito civil – introdução, p. 283 e ss. Por sua vez, KAYSER, Pierre, Protection de la vie privée, classifica os direitos de personalidade em: direito de se opor à divulgação da vida privada, direito de se opor a uma investigação na vida privada e, ainda, direito de resposta.
2.Direito à Privacidade e Liberdade de Expressão DANIELA FERRO AFFONSO RODRIGUES ALVES Juíza de Direito do TJ/RJ, Direito à Privacidade e Liberdade de Expressão, revista24_285, (www.emerj.tjrj.jus.br).
3. DOC-P.S-12024---CJCODCIVIL---Relatorio-Geral-20240515 (www6g.senado.leg.br)
4.GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, Parte geral, volume 1. 19ª edição. São Paulo : Saraiva, 2017.
5.GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, Direito das sucessões, volume 7. 4ª edição. São Paulo : Saraiva, 2017.
6.GONÇALVES, Carlos Roberto. Parte geral, volume 1. 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016.
7.LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens Digitais. 1ª edição. Indaiatuba, SP : Editora Foco Jurídico, 2017.
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