
O processo de desfiliação é complexo e sensível, envolvendo não apenas questões de responsabilidade familiar, mas também os sentimentos entre os membros da família. Para que alguém busque a desfiliação, é provável que tenha se sentido profundamente machucado emocionalmente.
A filiação no Brasil é, em regra, irrevogável e inalienável, vinculada à ideia de parentesco e à responsabilidade civil e afetiva. O Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002) aborda tanto a filiação biológica quanto a socioafetiva (adoção), estabelecendo que o vínculo entre pais e filhos gera direitos e deveres, independentemente da origem. A desfiliação refere-se ao rompimento jurídico do vínculo entre pai ou mãe e filho, o que só pode ocorrer em situações específicas e através de decisões judiciais.
A desfiliação paterna/materna tem ganhado destaque nas últimas décadas, especialmente em virtude da crescente preocupação com os direitos da criança e o abandono afetivo. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) em recente decisão manteve a desconstituição da paternidade requerida por um rapaz, para que constem em seu registro de nascimento apenas os nomes de sua mãe e dos avós maternos, bem como sejam extintos os deveres recíprocos – como os de natureza patrimonial e sucessória.
Outro exemplo é a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), que reconheceu e proveu uma apelação cível em uma ação de descontinuação da parentalidade. Nesse caso, uma mulher buscou a exclusão de sua filiação paterna após ter sofrido abandono afetivo. O TJDFT reformou a sentença anterior, julgando procedente o pedido e admitindo a possibilidade de “desfiliação” parental em virtude do abandono afetivo.
Na sentença, o juiz ressaltou que a Constituição Federal considera a família como base da sociedade. Os pais têm o dever de vigiar, criar e educar os filhos, estabelecendo bases para uma vida digna. Ele argumentou que a ausência de laços afetivos transforma o núcleo familiar em um espaço de insegurança e hostilidade, e que o convívio do indivíduo com o sobrenome dos ascendentes pode causar desconforto e sofrimento psíquico. Motivo pelo qual a jurisprudência vem entendendo que o rol da Lei de Registros Públicos (6.015/1973) deve ser flexibilizado diante de circunstâncias excepcionais, como é o caso do abandono afetivo”, diz um trecho da decisão.
O juiz também invocou o Código Civil, que garante a toda pessoa o direito ao nome, enfatizando que o direito ao nome envolve uma tutela da dignidade da pessoa humana. A decisão concluiu que o abandono afetivo constitui motivo justo para a supressão do sobrenome, confirmando que o pedido de desfiliação deve ser entendido como um desligamento do vínculo do poder familiar biológico, em decorrência do prejuízo causado aos direitos da personalidade do autor.
Outro caso ocorreu em Goiás, uma jovem conseguiu oficializar a maternidade socioafetiva e excluir a maternidade biológica de seus documentos. A decisão foi da Vara de Família e Sucessões de Valparaíso de Goiás. No caso dos autos, a mãe biológica da autora já tinha 14 filhos quando engravidou, motivo pelo qual optou por entregar o bebê à irmã. A tia biológica, que não podia ter filhos devido a um câncer no ovário diagnosticado aos 20 anos, a criou desde então, mas o vínculo nunca foi formalizado.
Quando a autora completou quatro anos, a mãe socioafetiva teve a oportunidade de morar na Espanha e a deixou com a avó, enquanto organizava a documentação necessária para levá-la também. Contudo, ao completar cinco anos, ela precisou ser registrada para ingressar na escola. Assim, sua mãe biológica realizou o registro em seu nome.
Posteriormente, a mãe socioafetiva obteve a custódia definitiva e levou a menina para a Espanha, onde ela viveu até os 18 anos. De volta ao Brasil, já adulta, ela sentiu a necessidade de formalizar a adoção, especialmente após o nascimento do próprio filho, ao perceber a tristeza da mãe por não estar registrada como avó no documento da criança.
A desfiliação paterna e materna é um instituto jurídico complexo. As decisões recentes demonstram que, embora o abandono afetivo e outros fatores sejam relevantes, a desfiliação é autorizada apenas em casos que visam a proteção do bem-estar do filho, com a análise de cada situação para avaliar o potencial prejuízo irreparável. A Constituição Federal e o Código Civil Brasileiro asseguram a proteção do vínculo familiar, e a desvinculação do genitor ou da genitora somente ocorre em situações extremas e mediante decisão judicial.
É importante ressaltar que o pedido de desfiliação pode ser feito pelo filho, mas não pelo genitor. Apenas em casos específicos, onde o genitor conseguir comprovar que foi induzido ao erro ao registrar uma criança, é que se pode cogitar essa possibilidade. Mesmo assim, é necessário demonstrar que não há vínculo afetivo entre eles, segundo entendimento recente dos tribunais.
O direito à convivência familiar e à afetividade permanece como uma base fundamental nas decisões judiciais sobre desfiliação, refletindo a importância dos laços afetivos para o desenvolvimento saudável da criança. A análise cuidadosa desses casos é essencial para garantir que o melhor interesse do filho seja sempre priorizado, garantindo que as decisões jurídicas não apenas atendam às normas legais, mas também promovam o bem-estar emocional e psicológico dos envolvidos.